Capítulo 4
- Tati Belisário

- 8 de mai.
- 3 min de leitura
Fragmentos de Mim
Depois daquele domingo sangrento, nada voltou a ser como antes. Voltar a Belo Horizonte não significou alívio. Pelo contrário, foi como acordar num corpo estranho, numa rotina que já não me reconhecia. O que antes era simples — sair, trabalhar, pegar ônibus, estar entre pessoas — tornou-se um labirinto emocional.
Veio o diagnóstico: síndrome do pânico. Mas a verdade é que, no fundo, os meus medos sempre estiveram ali — disfarçados, contidos, camuflados pela pressa da vida. O trauma não os criou. Apenas os despiu.
As crises vinham como ondas violentas: suores nas mãos, coração acelerado, uma vertigem interna que me fazia sentir à beira do desmaio. O corpo dizia "foge", mesmo sem perigo aparente. E a mente? Presa no ônibus. Repetia a voz do menino, o sangue, o facão. Era como se a cena vivesse em mim — sem pausa, sem botão de parar.
Para quem vive com transtorno borderline, como eu viria a descobrir mais tarde, cada dor é uma ferida aberta, sentida com a profundidade de mil outras. Tudo é mais intenso. Cada emoção é absoluta. E cada lembrança, quando traumática, parece gravada não só na mente, mas na pele, no corpo todo.
As pessoas tentavam compreender. Algumas perguntavam, outras evitavam o assunto. Mas como explicar o que não se vê? Como tornar visível um buraco interno? Era como viver num mundo onde todos falam uma língua que eu não compreendia.
Recorri à terapia. No início, com resistência. Sempre tive medo de me expor demais — de ser abandonada ou incompreendida. Mas, aos poucos, aquele espaço tornou-se um espelho seguro. Lá, comecei a dar nome às emoções que tantas vezes me confundiram: raiva que se disfarçava de tristeza, medo que surgia como fúria, apego que sufocava.
O trauma acentuou tudo. A instabilidade emocional que já me acompanhava tornou-se mais visível. Oscilava entre querer desaparecer e sentir-me invencível. Entre um desejo desesperado de ser acolhida e um impulso feroz de afastar todos. Esse movimento — de amor e afastamento — fazia parte do que eu ainda não sabia nomear: borderline.
Continuei a trabalhar. A loja, os compromissos, os atendimentos — tudo seguia, como se nada tivesse mudado. Por fora, eu mantinha a aparência de normalidade. Mas por dentro, era um esforço constante, uma batalha silenciosa que me consumia dia após dia.
Evitava lugares fechados. Multidões deixavam-me em alerta. Reuniões longas, festas, até mesmo encontros casuais com conhecidos exigiam uma energia que eu já não tinha. Criava estratégias para sobreviver socialmente: sentava sempre perto da porta, mantinha uma garrafa de água na bolsa, e ensaiava respirações conscientes para convencer o corpo de que ainda estava segura.
Não era fácil. Mas, aos poucos, algo começou a mudar.
A dor não desapareceu, mas deixou de gritar. Já não me arrancava do chão. Tornou-se mais silenciosa, mais discreta — uma presença que eu aprendi a reconhecer sem me render. Com o tempo, percebi que renascer não era voltar ao que eu era antes. Era, sim, aceitar quem eu tinha sido, acolher quem eu era agora, e abrir espaço — com coragem — para a mulher que ainda podia vir a ser.
Numa das sessões, a minha terapeuta olhou para mim com firmeza e disse:
— Você está num looping de estresse constante. Precisa parar. Respirar. Tirar férias. Reconectar-se com o essencial.
A sugestão soou quase impossível. Desligar-me da loja, da rotina, das obrigações... Mas havia algo naquela proposta que me tocou profundamente: a possibilidade de me desligar do ruído e escutar o que havia em mim.
Decidi aceitar. Convidei uma amiga e planejamos uma viagem. Só nós duas, sem planos rígidos, sem obrigações. Apenas estrada, natureza e a esperança de encontrar, em algum lugar entre o silêncio e o verde, uma parte de mim que ainda estivesse viva e inteira.
Foi aí que começou uma das fases mais imprevisíveis — e transformadoras — da minha vida.
A fase mais louca, mais livre, mais minha.
Continua...




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