Capítulo 1
- Tati Belisário

- 7 de mai.
- 5 min de leitura
Atualizado: 8 de mai.
O Primeiro Grande Tombo
Desde criança, eu sempre me senti diferente dos outros. Não sei explicar ao certo, mas havia uma sensação persistente de que eu não era amada o suficiente, como se tudo o que eu dava aos meus pais fosse decepção. Com o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), era difícil parar quieta ou prestar atenção em alguma coisa, o que me levou a ter problemas na escola e, claro, em casa também. Minha irmã mais velha, por outro lado, era a garota exemplar. Ela sempre tirava notas boas, era o orgulho dos professores e dos meus pais, enquanto eu era o pesadelo deles.
Meu pai sempre foi muito rígido na minha educação, chegando ao ponto de bater, gritar, coisas desse tipo. Às vezes ele estava alegre e, de repente, mudava rapidamente de humor. Isso fez com que eu crescesse com um certo medo dele, medo de levar mais uma bronca. Então, quanto mais eu crescia, mais me afastava emocionalmente dele, e foi assim até a vida adulta.
Sentia que meus pais sempre me comparavam com minha irmã, e eu ficava muito chateada por não conseguir ser tão boa quanto ela. Isso acabou criando uma certa rivalidade entre nós duas, e com o tempo fomos nos afastando mais e mais. Minha adolescência foi bem complicada. Eu sempre arrumava briga e confusão na escola, ao ponto de parar na diretoria e quase ser expulsa por ofender um professor. Sim, eu era bem rebelde e deprimida.
Meu primeiro namorado foi aos 15 anos, e acabei terminando com ele porque tinha me apaixonado pelo meu vizinho, que era 8 anos mais velho que eu. A minha família e a dele sempre foram muito próximas. Frequentava a casa deles, às vezes, muito mais que a minha. Essas experiências moldaram quem eu sou hoje, trazendo tanto momentos de dor quanto de crescimento.
Um certo dia, eles me convidaram para viajar. Por confiar muito neles, meus pais acharam que eu estaria segura e acabaram deixando eu ir. Apesar de ser apenas uma adolescente de 16 anos, eu me senti adulta naquele momento, como se aquela viagem fosse uma chance de escapar, mesmo que por alguns dias, da pressão que eu sentia em casa. Mas aquela confiança foi quebrada de uma forma que nunca poderia ter imaginado.
Uma noite, saímos para uma boate. Eu era menor de idade e, por isso, não podia consumir bebidas alcoólicas. Mas ele comprou algo para mim. Lembro vagamente de beber aquilo e começar a me sentir estranha, como se o mundo ao meu redor estivesse se desfocando. Meu corpo começou a ficar pesado, meus pensamentos confusos. Voltamos para a casa, e ele me colocou na cama. Eu mal conseguia abrir os olhos ou falar alguma coisa. Meu corpo estava paralisado, como se eu não tivesse mais controle sobre ele. Queria gritar, pedir para ele parar, mas as palavras não saíam. E então, ele me estuprou.
No dia seguinte, acordei sozinha na cama. Meu pijama estava sujo de sangue. Fiquei desesperada, chorando em silêncio enquanto tentava entender o que tinha acontecido. A culpa e a vergonha eram tão grande que eu não conseguia pensar em contar para alguém. Como eu ia dizer aos meus pais? Como ia explicar algo que eu mesma mal conseguia processar? Então, me fechei para a vida, como uma concha. Passei dias trancada no quarto, chorando, revivendo aquele momento em minha mente, sem saber como seguir em frente.
Eu me sentia suja, confusa e sozinha. Uma dor na alma me consumia diariamente, e não tinha a menor ideia do que fazer com ela. Foi quando comecei a me cortar. Eu queria sentir qualquer outra dor menos aquela. No início, eram cortes nos braços, pequenas marcas que tentavam aliviar o peso que carregava dentro de mim. Mas, com o tempo, fui arranjando outros métodos de me anestesiar daquele sofrimento, como se cada ferida pudesse, de alguma forma, apagar a angústia que me consumia.
Em um dia qualquer, tive uma discussão com meu pai. Não lembro ao certo qual era o motivo, mas aquela briga me deixou tão mal que me tranquei no quarto, sentindo que não havia mais saída. Foi então que peguei um vidro de comprimidos de antialérgico e tomei todos. Eu sabia exatamente o que podia acontecer, e mesmo assim, eu o fiz. Essa foi a primeira vez que tentei me matar. Depois de tomar uns 40 comprimidos, acabei dormindo, como se o sono fosse uma fuga temporária daquele pesadelo que era a minha vida.
No dia seguinte, acordei e, ao olhar meu quarto, percebi que havia vomitado o medicamento durante a noite. Por sorte, nada de grave aconteceu. Mas, naquele momento, não senti alívio. Senti apenas uma dor ainda mais profunda, como se até a morte tivesse me rejeitado. Aquele quarto, que deveria ser meu refúgio, parecia um lugar frio e vazio, que ecoava minha solidão e desespero.
Depois de tudo o que aconteceu, eu fiquei completamente perdida. Não sabia a quem recorrer, o que dizer, ou como lidar com aquilo. O medo de contar aos meus pais era tão grande que eu simplesmente calei. Engoli o choro, engoli a dor, e escondi esse segredo dentro de mim por 15 anos.
Lembro claramente do dia em que finalmente criei coragem e contei ao meu pai o que havia acontecido. Era como se eu estivesse abrindo uma ferida que nunca cicatrizou, esperando, talvez, algum acolhimento, uma palavra de conforto. Mas o que recebi em troca foi uma frase que me dilacerou:
"Também, você só anda com essas roupas de puta."
Naquele momento, eu congelei. Fiquei paralisada diante da crueldade daquelas palavras. Era como se, para ele, o que aconteceu comigo fosse consequência da minha roupa, do meu corpo, da minha existência. Um julgamento frio, machista, autoritário — vindo justamente da pessoa que, na minha cabeça de filha, deveria ser um porto seguro.
Naquele instante, percebi que a dor das palavras dele doía mais do que tudo que eu já havia passado. Mais do que o próprio trauma. Porque ser violentada já é devastador. Mas ser culpada por isso, ainda mais pelo próprio pai, é algo que fere num lugar profundo, quase irreparável.
Falei para ele, com a voz embargada: "O que você acabou de dizer me machuca mais do que qualquer coisa que já vivi." E era verdade. Ninguém merece escutar algo assim, principalmente de quem deveria proteger.E essa é exatamente a questão: proteção.
Nunca me senti segura perto dele. Nunca me senti confortável com sua presença. E isso não mudou nem quando cresci. A ausência de acolhimento, o medo constante, a culpa que ele jogou sobre mim — tudo isso me acompanhou até a vida adulta.
E ainda hoje, às vezes, me pego tentando entender como alguém que deveria cuidar, amparar, amar... escolheu me silenciar e me culpar.
Gratidão


Comentários